15.5.11

3. RECONHECER LIMITES TAMBÉM É ÉTICO

Texto adaptado do original de Marcelo Quaranta
Eu sou um "sobrevivente de mim mesmo".
No Controle de tráfego aéreo sobrevivi por reconhecer meus limites, e ter sempre bons profissionais ao meu lado na hora em que eu necessitava de ajuda, e consegui passar incólume por todo aquele período inicial de achar que era o ás da vetoração, ou melhor, o indestrutível super homem, pois nada me abatia.
Nada como amadurecer um pouco pra enxergar, com serenidade, quantas coisas dispensáveis e inúteis eu fiz, que poderiam ter me causado problemas irreparáveis... E pior ainda a outros. Sabe quando você entra num numa sala radar se achando o próprio senhor do tudo eu posso? Pois é... Essa é a fase perigosa!Não há situação que você não encare! Não há problemas que sejam capazes de te envergar e quebrar! Lá se vai o próprio dono do céu e dos vetores!.
Aí o tempo passa, você vai amadurecendo, vê um incidente aqui, outro ali... Os cabelos brancos chegam (no meu caso caem mais do que chegam) e você acaba finalmente enxergando que o que faz a diferença entre os homens e os meninos na aviação não são inúmeras vetorações em dia de mau tempo. É somente uma frase curtíssima: Hoje não dá pra mim! Pronto! Tudo resolvido! Vidas poupadas, avião inteiro e a tua consciência tranqüila!
Motivos não faltam para que essa frase se torne algo tão solido. Reconhecer o seu limite de profissional e ser humano: “Problemas familiares, problemas com os filhos, problemas com os equipamentos, que são as suas ferramentas de trabalho, problemas com o seu chefe, problemas do transito, problemas do dia a dia...
E basta um componente destes acima, somado a uma situação que reina naquela hora meio confusa, não vivida, para vivenciar uma situação em que “Não era pra mim hoje”..... Bastava apenas pedir por ajuda, pedir para ser substituído, deixar o orgulho de lado, reconhecer que somos falhos e ainda estamos em fase de construção, reconhecer que ainda nos falta alguma coisa. E nessas horas como é bom aquele toque do verdadeiro amigo ao lado, do seu assistente, do seu checador/monitor, que vem na hora certa dizendo: "Não seria melhor fazer assim ou assado?? Para que esta situação não vá à diante"..... Pronto aquela luz se ascendeu e o que antes era trevas se tornou algo simples de fazer.
Muitas das vezes, aprendi com os erros de outros, para que eles não se repetissem, e na nossa profissão errar significa por em risco vidas.Não podemos nos julgar Deuses onipotentes, achando que não necessitamos de ajuda, e nem tão pouco sermos auto-suficientes na nossa profissão. Sempre haverá momentos em que a ajuda é bem vinda e ela será fundamental para que o erro não ocorra.Vamos a uma narração de um amigo nome fictício, mas que ocorreu de fato, e que serve como exemplo para muitos que se julgam senhores feudais....

O Super ControladorAstrogildo entra na sala de controle com aquele ar de superioridade que dá raiva, mas é unanimidade que sua presença é um conforto e alívio para toda a equipe, porque o homem é um controlador de vôo muito habilidoso e ninguém tem dúvida disso.
Só que ele se sente o "Deus do controle do tráfego aéreo" e assim se dirige para assumir o setor dois no horário de "atola". O operador da posição já estava suando quando viu com alivio a presença do super-controlador.- Pode sair "novinho" que eu tô assumindo.- Bom... tem esse Canadian em órbita sobre Campinas e...Astrogildo dá uma olhada pra tela e vai logo respondendo.- Não se preocupe que eu desenrolo esse abacaxi. Vai descansar.Sem mais o que dizer, afinal era o Astrogildo assumindo a posição, o operador se afasta, mas fica de perto pra ver como os Deuses controlam aviões.Astrogildo senta na posição e vai organizando a situação.
- Canadian zero nine seven eight, descend and maintaim one eight zero.
- Varig uno quatro cinco meia, curva direita, proa zero nove zero.
- American six seven eight nine, clear aproach runway zero nine right, report stablished.
- Marília quatro cinco meia sete, tráfego Boing sete três sete, duas horas, seis milhas, descendo para uno oito zero.
- November sete oito nove meia, desça via TUCA dois, zero nove direita, nível uno quatro zero.
O "novinho" pasmo do lado do Astrogildo, imaginando como tudo fluía naturalmente sob a batuta do mestre supremo. Mas o Astrogildo só estava aquecendo.
- Cargo one seven four five, report level one two zero.
- Marília quatro cinco meia sete, negativo Pira, mantenha o perfil de subida.
- Papa tango vitor mike india, autorizado direto Campinas.
O homem já estava controlando mais de oito aeronaves quando o pessoal começou a cochichar.- "Eu já vi ele controlar treze aviões com os pés nas costas"...O chefe de equipe ameaçou intervir, mas era o Astrogildo na posição, então ele deixou rolar pra ver o que ia dar.

De repente um operador do setor três grita pro Astrogildo.
- Astrooo!-
Fala!-
Tá vendo o Varig em cima de Bragança?
- Passa que eu desenrolo.
O operador fica com raiva pelo autocontrole do Astrogildo, mas acata sua decisão. Afinal era o Astrogildo. Então ele passa a aeronave para "Deus" resolver a situação.
- Varig uno quatro meia meia, chame controle em uno dois quatro decimal oitenta e nove.E o Astrogildo ao ver o tráfego do Varig, já vai mandando ver...
- Varig uno quatro meia meia, desça e mantenha nível uno quatro zero.O Varig ia responder, mas o Astrogildo continuava dando instruções para os outros aviões.Depois de alguns minutos, Astrogildo instrui para o Varig.
- Varig uno quatro meia meia, curva esquerda, proa uno oito zero limitado pelo curso do localizador, número três para pouso, pista zero nove direita.O Varig ia novamente responder, mas Astrogildo excitado com toda configuração de tráfego, cortou a transmissão para falar com outro avião.Logo em seguida ele instrui novamente o Varig.
- Varig uno quatro meia meia, esquerda proa uno dois zero para o localizador, reporte estabilizado.De repente o Astrogildo fica furioso porque vê que o Varig não cumpriu a instrução. E chama na fonia.- Varig meia meia, controle.- Prossiga controle.
- Porque o senhor não cumpriu a última instrução para aproximação da sua aeronave?O Varig responde na fonia com um tom sarcástico
- Controle! Eu estou decolando para Brasília e não para pouso em Guarulhos! Tentei avisar o senhor, mas acho que o senhor está muito ocupado!O silêncio foi total dentro da sala de controle e todos olhavam o Astrogildo paralisado, na busca de algo que o confortasse pelo seu erro.... Que só aconteceu pela sua arrogância em achar que sabe de tudo e não necessita da ajuda de ninguém.... Do outro lado da sala, um sorriso sinistro se esconde no rosto do controlador do setor três.

Bom aonde isso nos leva....Muitas das vezes não reconhecemos nossas limitações em relação a uma determinada situação, e muitas das vezes pagamos um preço por não procurar por ajuda nos momentos cruciais.Eu mesmo me lembro que passei a posição de controle para um CTA com mais experiência que eu, pois uma situação estava se desenrolando em algo que eu ainda não tinha vivenciado, e dei graças a Deus de ter sido substituído naquele momento, ficando ao seu lado para aprender e ajudá-lo se fosse o caso.Isso propiciou uma maior segurança no desenrolar do trabalho, aumentando o nível de segurança e reduzindo os riscos.
Simples assim: recuar para ganhar! Muitas vezes ser profissional não é fazer tudo. É abrir mão de fazer algo por reconhecer os próprios limites. É isso que faz a diferença entre os homens e os meninos.
Uma das grandes ameaças tanto de CTA´s quanto de pilotos é a "Arrogância" em se achar um ser divino como o Astrogildo, onde errar é algo que não está no pensamento deste individuo. E quando se erra o mundo cai.....Saber baixar a bola na hora certa é indispensável. Reduzir riscos é isso: É não ter melindres em passar a posição para o mais antigo ou mais experiente, ou até mesmo acatar aquela dica do seu assistente, pois ele está ali para isso: "Te ajudar".
O bom profissional não tem espaço para ciúmes bobos ou egos feridos, pois não estamos acima do bem ou do mal, e toda ajuda é bem vinda. Trabalhar em "Equipe" é muito saudável, e é a condição primeira para se tentar zerar os riscos ao final de uma jornada de trabalho. E cada falha, por menor que seja, é motivo para longas reflexões, para que não se torne grande, e venha a se tornar algo imensurável e sem retorno, sem conserto. Antes acatar um toque do amigo ao lado do que passar por uma situação sem retorno.
Procure sempre no seu local de trabalho em fazer "Amigos", e não apenas colegas de trabalho, pois eles são fundamentais e essencial na construção de um dia melhor e sem maiores problemas. Tente!! Você vai sentir a diferença.



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